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Aceitaria ter o seu perfil de ADN no BI?
Friday 17th of June 2011
Author: Maria Betânia Ribeiro

Helena Machado, do Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS) da UMinho, considera que os portugueses não fariam grande contestação sobre o perfil de ADN surgir no Cartão de Cidadão/Bilhete de Identidade. Essa, aliás, é a tendência internacional. Após um estudo com reclusos, a investigadora quer fazer uma sondagem nacional aprofundada na área. A professora lamenta, porém, que a burocracia esteja a travar o crescimento da base de dados de ADN do país, que contém apenas 101 perfis de dez milhões de pessoas.

Helena Machado reflectiu sobre a possibilidade de inserção da informação sobre o perfil de ADN no Bilhete de Identidade/Cartão do Cidadão no estudo "Base de dados de perfis de ADN com propósitos forenses em Portugal - Questões actuais de âmbito ético, prático e político", desenvolvido em 2010 pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o projecto envolveu entrevistas de profundidade a 31 reclusos dos estabelecimentos prisionais de Braga, Guimarães e Paços de Ferreira sobre a sua percepção da base de dados genéticos criada em 2008.

Observando a história do Bilhete de Identidade em Portugal, Helena Machado recorda que o meio de identificação através da impressão digital começou a ser utilizado nos finais do século XIX, recolhendo-se impressões digitais apenas de reclusos do sexo masculino. Depois, foi alargado para os funcionários públicos, começando-se progressivamente a alargar a toda a população, sendo agora universal. "O perfil de ADN tem mais informação do que a impressão digital", explica a investigadora, considerando que, através da matéria genética, se consegue obter "muito mais informação sobre a pessoa" do que a mera identificação, "daí que haja um debate ético em torno disto".

img99120Helena Machado é professora do Departamento de Sociologia da UMinho

Estudo sugere mais critérios de inserção na base nacional de ADN

A base nacional de ADN, sob tutela do Instituto Nacional de Medicina Legal, contém 101 perfis e cresce a um ritmo lento, impossibilitando a sua utilização recorrente. "Se não temos uma base de dados com informação, por exemplo, de toda a população, torna-se mais difícil fazer a identificação", esclarece Helena Machado, apontando, ainda, algumas contingências ao crescimento da base de dados nacional. "Temos uma lei que é demasiado restritiva e que envolve muita burocracia", refere, citando o sociólogo Boaventura de Sousa Santos: "A nossa cultura jurídica serve os interesses burocráticos da Justiça, não os dos cidadãos".

"Para fazer uma simples recolha de amostra biológica, uma zaragatoa bocal, é preciso que um juiz ordene ou que o Ministério Público peça para que isso seja feito, salvaguardando os direitos do arguido", o que, de acordo com a investigadora, "complica o trabalho de quem faz investigação criminal nestas circunstâncias". O ideal seria manter a base de dados na tutela do Instituto Nacional de Medicina Legal, mas torná-la "operacional para quem faz investigação policial", distanciando-se do contexto tradicionalmente científico em que se insere.

"Parece-me que houve uma preocupação maior em obedecer aos princípios do sistema penal português, e em fazer uma lei 'bem feita' do ponto de vista académico, do que propriamente uma lei que possa ser concretizada na prática", sugere Helena Machado. Recordando a portaria do Ministério Público que estabelece o preço mínimo de 80 euros e o máximo de 700 euros para a inserção de perfis genéticos na base de dados, a professora salienta que se tratam de valores excessivamente elevados quando comparados com o contexto europeu. "Não se pode querer ter lucro de um instrumento que é para serviço público", argumenta, considerando que a revisão da tabela de preços constitui um factor decisivo para o banco de dados crescer.

Segundo a investigadora, a lei também deverá ter em conta a integridade moral do indivíduo. "No momento da recolha tem que haver uma explicitação dos objectivos para os quais essa amostra é recolhida". Para esse efeito, criou-se em Portugal e noutros países um formulário de consentimento, cuja linguagem "não está adequada a quem se imagina que seja o arguido médio ou condenado", tratando-se de uma "linguagem científica e rigorosa do ponto de vista do direito". Helena Machado defende, assim, que a informação vinculada "tem que ser numa linguagem adequada ao leigo", considerando que se trata de uma vertente dos direitos individuais "que não tem sido acautelada".

"No fundo, seria necessário termos uma lei diferente, sensibilizar os magistrados para a existência da base de dados e automaticamente inserir os dados dos condenados, visto que a base de dados tanto pode ser incriminatória, como pode servir para inocentar", realça a investigadora do CICS: "Enquanto se encarar a base de dados como sendo apenas incriminatória, vai haver sempre muitas salvaguardas em relação a vários direitos, mas a inserção na base de dados pode constituir por si só um novo direito que nós, os cidadãos cumpridores, não tomamos em consideração".

img99121O objectivo é incluir o perfil de ADN no cartão único. A investigadora considera que, através
da matéria genética, se consegue obter "muito mais informação sobre a pessoa"
do que a mera identificação.

Universalizar dados para fins de identificação civil e criminal

De acordo com a docente, a população portuguesa sempre aceitou pacificamente a questão do Bilhete de Identidade. "Temos lá a nossa impressão digital e a lei permite que essa impressão digital possa ser cruzada com qualquer impressão digital encontrada numa cena de crime", recorda. "O meu palpite é que não haveria grande contestação a ter lá também o perfil de ADN". Recordando um estudo preliminar feito em Espanha, em 2004, sobre a criação de uma base de dados "mais ou menos expansiva", Helena Machado realça que as tendências apontam para "alguma facilidade por parte da sociedade em se aceitar isso".

"Eu penso que seria bem aceite pela população se as coisas fossem transparentes", salienta Helena Machado. Considerando que a sua proposta "é radical", servindo "mais o direito à igualdade", a investigadora sugere a universalização da base de dados com fins de identificação civil e criminal. "Serão muito poucas as pessoas a defender neste momento que se construa uma base de dados de perfis de ADN para toda a população, mas já existe uma base de dados com as impressões digitais que serve finalidades de identificação civil e identificação criminal", sublinha, referindo que a impressão digital e a impressão genética têm imagens culturais diferentes. "Eu apostaria no controlo dos usos da informação e no acesso à informação", sugere a docente, considerando que a informação em si mesma é sempre inofensiva.

Grupos de discussão, livro e sondagem são próximos passos

O projecto desenvolvido pela investigadora passará, no futuro próximo, pelo estudo da aceitação ou rejeição da expansão da base de dados através de grupos de discussão. "A minha ambição seria, depois, com base nesses resultados, fazer outro projecto com uma sondagem nacional a nível da população", esclarece. Helena Machado acaba de escrever um livro "a quatro mãos" com Barbara Prainsack, intitulado "Tracing Technologies: Prisoners' Views in the Era of CSI". A obra será publicada em 2012 pela editora Ashgate, no Reino Unido. Barbara Prainsack é cientista social da King's College, em Londres, e desenvolveu em 2008/09 uma investigação pioneira na Áustria com reclusos, que serviu de inspiração ao projecto coordenado por Helena Machado. "Repliquei o trabalho, acrescentando uma questão bastante interessante: a reinserção social e a prevenção da criminalidade".

Texto e fotos: Maria Betânia Ribeiro

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